Myra chegara ao seu destino, a morena de laranja ainda seguia viagem.
Distraída com a conversa, Myra quase que não prestava atenção aos avisos que soavam pela carruagem, a cada estação ou apeadeiro. Mas num pequeno momento de silêncio, raro entre aquelas duas passageiras, Myra lá ouviu proclamar em voz rouca e gutural o nome do seu destino.
Depois de uma despedida atabalhoada, Myra agarrou na sua mala, e saiu do comboio. Parou no meio do átrio da estação, pousou a mala, e olhou para ambos os lados. Sempre gostara daquele turbilhão de gente a sair e entrar das estações de comboios, nas horas de chegadas e partidas. Sentou-se em cima da mala e esperou, de olhar perdido e pensamento no infinito.
- Myra!!!!
Tinham passado cerca de 20 minutos. Aquela voz, ainda que não a ouvisse havia muito tempo, era-lhe bem familiar.
- Annie!!!!! – e Myra levantou-se e desatou a correr na direcção de quem a chamava – Caramba, pensava que nunca mais te via!!!
Lá estava ela, a sua amiga Ann, que conhecera, havia uma eternidade, nos tempos de faculdade. Abraçaram-se com força.
Ann era uma mulher muito bonita mesmo, mas de uma beleza que tinha tanto de discreta como de incadescente. Era ruiva, de cabelos rebeldes, pele branca, mas não pálida, e olhos castanhos esverdeados. Como era já meio da primavera, começava, a aparecer sardas no rosto dela, o que lhe dava um ar traquina. Parecia uma miúda, apesar dos seus quase 30 anos. Nos tempos de faculdade, quando Myra a conhecera, Ann era quase gordinha, usava óculos e vestia roupa muito larga, mas o tempo tinha-a feito uma mulher de excelente compleição física, com um porte absolutamente elegante. Vestia-se de forma muito simples, o que não chamava grande atenção sobre si. Mas de facto, quando se olhava bem para ela, não se conseguia mais desviar o olhar - um rosto perfeito, simpático, sorridente, doce e altivo ao mesmo tempo, uma atitude positiva, segura, uma aspecto cuidado e negligé, ao mesmo tempo, bom gosto. Nestes últimos anos, quando estava na companhia de Ann, Myra divertia-se a reparar nos homens que inevitavelmente olhavam segunda vez para ela, Ann - era sempre assim: passavam, olhavam distraídamente, desviavam o olhar, mas voltavam sempre a cabeça para olhar de novo. Havia qualquer coisa em Ann que chamava discretamente a atenção, e era difícil definir exactamente o quê. É como se a rodeasse uma aura de qualquer coisa de muito positivo, sempre.
Nos tempos da faculdade, ainda Ann não chamava tanta atenção sobre si, conhecera aquele que era o amor da sua vida, e com ele ficara até então. Eram felizes, divertidos, amorosos, ambos. Perfeitos um para o outro. Myra adorava a companhia deles, e aguardava o esperado casamento no ano seguinte.
- Annie, pá, tinha mesmo saudades tuas!!!
- Oh, amiga, também eu! Deixa-me olhar para ti. – e chegou-se para trás, para poder observar Myra da cabeça aos pés – Sempre na mesma!! Gira como sempre!!!
- EEEhhhh!!! Parva. Tu é que estás impecável!
- Deixa-te de salamaleques. Vamos mas é embora daqui, que estás com cara de cansada e com fome.
- Por acaso. Bem, mas tem sido uma viagem cheia de coisas engraçadas.
- Ok, vai contando, mas vamos andando para o carro.
E enquanto se dirigiam para o carro de Ann, entravam e arrancavam dali, Myra foi contando os seus episódios daquele dia.
Depois de muito blábláblá sobe o rapaz da camisola cinzenta, o bar da estação e a morena de laranja, Ann começou à procura de um sítio para estacionar, uma vez que já estavam a chegar perto de sua casa.
- Bem, Myra, fiquei mesmo surpreendida quando me disseste que querias vir para cá. E ainda bem que vieste, vai ser muito bom ter-te por perto de novo, mas vais ter que me contar o que se passou, para te fazer deixar tudo para trás e mudar de cidade!
- Depois conto, Annie. Neste momento ainda não sou lá muito capaz de falar sobe o assunto... e obrigadão pela estadia. Prometo que assim que arranjar um emprego e depois poiso para mim, vos deixo em paz.
- Ah, nem penses nisso; ainda por cima, já não é “nós”. Sou mesmo só “eu”, lá em casa...
- Hã!!!???
- É isso mesmo que tu ouviste.
- Não pode!!! Mas e o teu “mais-que-tudo”, o homem da tua vida, o teu futuro marido? Que raio se passa?
- Ora... o costume.
- Ann, estou a falar a sério. O que se passa? Vocês não iam casar para o ano?
- Íamos, disseste bem. Já não vamos. Chegou ao fim, foi o que foi.
- Annie, como é que uma relação de 5 anos chega assim ao fim? Vocês eram o casal mais perfeito que alguma vez conheci. Sempre superaram as vossas pendengas, e gostavam imenso um do outro. Viviam juntos, e estavam tão bem!! Que raio se passou?
- Pois era assim, mas desta vez foi demais.
- ihhhhh, já vi quem pôs a pata na poça...
- E viste muito bem.
- Mas e então, que foi que ele fez?
- Vamos subir, que já te conto, não é preciso ficarmos aqui na rua a conversar.
- Ai que raiva! Só tu para matares uma pessoa de curiosidade, assim. Vamos lá.
E saíram do carro, entrando depois no prédio onde Ann morava, e no elevador. Como o elevador levava mais pessoas, vizinhos, e elas não falavam.
- Vá, desbobina. – disse Myra, impacientemente, logo que entraram na casa de Ann.
- Vamos para a cozinha, que vou fazer umas sandes para nós.
- GGGRRRRRR!!! Que raiva! Só estás a engonhar!
- Vá, vamos lá. – e foram. E enquanto preparavam alguma coisa para comer, continuavam a conversa.
- Pois é, Myra, lembras-te de eu ter dito que ele tinha conseguido ser aceite para dar aulas na Universidade?
- Sim. E depois?
- Fiquei contente, assim podíamos começar a organizar a nossa vidita.
- Claro.
- É. E estava a correr tudo muito bem, até que ele se envolveu com uma aluna. – Ann dissera isto de cabeça baixa, olhos postos no chão.
- Não! Não pode ser. Ele era a última pessoa que eu imaginaria capaz disso.
- Verdade, verdadinha. Eu também acreditava que ele era diferente, mas no fundo, são mesmo todos iguais.
- Mas como soubeste disso?
- Olha, descobri da maneira mais parva.
- Conta!!!
- Dia dos namorados, estás a ver? Achei na pasta dele, por acaso um cartão cheio de coraçõezinhos, assinado por ela. Coisas típicas de miúdas. Mas fiquei desconfiada.
- Coisa mais pirosa.
- Pois, mas pelo visto ele gostava, já que guardou religiosamente o cartão.... bem, como fiquei com a pulga atrás da orelha, foi uma questão de começar a ficar mais atenta. Internet até às tantas, “aulas” até tarde, telefonemas que ele não atendia ao pé de mim, pérolas dessas... cheguei ao ponto de lhe fiscalizar o telemóvel e os e-mails. Não é que me orgulhe disso, mas eu tinha que ter certeza!
- E quando tiveste essa certeza?
- Há coisa de 3 meses, achei que já tinha visto e lido o suficiente sobre aquele romance, e fartei-me de assistir de camarote. Confrontei-o.
- Ena! E ele?
- Negou, claro. Mas quando lhe disse o que sabia, ele não teve hipótese.
- Os homens, realmente....
- Eu não podia continuar com ele. Era insustentável. Ele ainda tentou voltar, desculpar-se, atribuir as culpas à miúda... mas isso ainda piorou as coisas.
- Calculo que sim. Eu também pensaria assim. Mas caramba, vocês tinham uma relação tão bonita...
- Que acabou, e não da melhor maneira, paciência. E assim, cá estou eu, solteiríssima de novo.
- Que é feito dele?
- Ora, saiu de casa, mas penso que vive sozinho, ainda.
- E hipóteses de uma reconciliação??
- Nunca. Tu conheces-me. Sabes muito bem que não volto atrás nestas coisas.
- Mas, ouve lá, amiga, tu estás bem?
- Conformada, pelo menos. Não posso esquecer um homem que amei perdidamente durante 5 anos e com quem imaginei o resto da minha vida, não é?
- Pois, provavelmente... Mas olha: agora estou cá eu. Estamos juntas, e vai ser como nos bons velhos tempos, amiga – e Myra abraçou Ann – vamos esquecer essas coisas em três tempos!!!
- AHHH!! Então a causa desta tua fuga tem moço metido nisso....
- Inevitavelmente, não é? Mas isso é outra conversa. Deixa-me digerir esta tua novidade, primeiro...
- Mas não me escapas, que quero saber tudo.
- A seu tempo, amiga, a seu tempo.
Bluerussian