Myra estava sentada em cima da sua própria mala, no átrio de uma estação de comboios. Gostava de sempre de chegar mais cedo pelo menos meia hora, porque sentia um prazer especial em observar as pessoas, tentando adivinhar para onde iriam. Perdia-se em considerações que iam desde a certeza de que aquele senhor baixinho e de bigode iria para a sua aldeia, dada "trouxa" enfiada à pressa dentro de um saco desportivo, com as pontas de fora, e a dúvida se aquele casal de jovenzíssimos namorados iria passar o fim de semana numa pousada, ou se iria cada um para a casa de sua mãe, dada a sofreguidão dos beijos e as malas enormes.
Myra perguntava-se se estaria ali alguém que a observasse a ela própria com o mesmo objectivo. Olhava em volta. Não, ninguém parecia reparar nela. As pessoas passavam, riam, uma ou outra trazia um ar infeliz, outras tropeçavam, outras barafustavam, muitas corriam, arrastando toda uma parafernália de objectos, e ainda havia quem andasse por ali a deambular, parecendo não conhecer destino. Fixou o olhar num rapazinho de camisola cinzenta que lhe pareceu não ter mais que 15 anos. Tinha um ar absorto, como se não tivesse nada a ver com aquele cenário buliçoso. Sobretudo, não tinha ar de quem esperava um comboio.
Mas estava atento. Myra não sabia, mas o rapaz da camisola cinzenta estava ali com um propósito muito definido.
Um aviso sonoro indicava a chegada de mais um comboio. O rapaz da camisola cinzenta, que tinha permanecido imóvel até esse momento, pareceu dar um salto: o seu corpo franzino parecia todo ele dizer "é agora". Desencostou-se da parede, e seguiu a passos largos para a linha que em que havia chegado o comboio, o que não era muito longe do sítio onde Myra estava . E parou. Pareceu ajeitar o cabelo, ligeiramente louro, ligeiramente ondulado (podia-se dizer que o rapaz da camisola cinzenta era ligeiramente bonito, também). "Aah", pensou Myra, "Claro. está à espera de alguém.". E estava. Mas de ninguém em especial. Num hiato de 10 minutos, o rapaz da camisola cinzenta circulou mais ou menos aos círculos por entre os apressados passageiros que chegavam naquele comboio, e os que queriam seguir viagem nele: um encontrão ali, uma bolsa descuidadamente aberta acolá, e o pequeno carteirista tinha subtraído quatro ou cinco carteiras. Myra sentiu um impulso de indignação que apenas durou um segundo - e foi substituído por uma curiosidade comichosa que queria saber mais sobre aquele pequeno criminoso da camisola cinzenta.
Quando o movimento da chegada/partida daquele comboio esmoreceu, Myra, que tinha seguido religiosamente todos os passos do rapaz da camisola cinzenta, levantou-se, deixando para trás a sua mala, e foi andando, fingindo estar apenas matando o tempo à espera do transporte. O rapaz da camisola cinzenta tinha parado de novo, e tinha também voltado ao seu ar absorto e nada ligado ao mundo. Myra fingiu ir deixar alguma coisa ao cesto dos papéis mais próximo, aproximando-se discretamente das costas do carteirista. Estando praticamente ombro-a-ombro com ele, disse baixinho, mas de modo que o rapaz da camisola cinzenta ouvisse:
- Eu vi .
Sem se voltar, e mesmo sem olhar para ela, ele disse:
- Eu sei.
Mas como? No meio da confusão das partidas e chegadas, Myra achava impossível.
- E não foges?.
- Não, - disse ele - , Não me tentaste impedir à primeira, é porque ias ficar a ver. Viste?
- Vi.
- E então?
- Então o quê?
- Que tal me safei?
Myra não queria acreditar na petulância do rapaz da camisola cinzenta. Tinha tido assistência, e estava radiante como um actor de um espectáculo de sala cheia.
- Safaste-te, mas aquelas pessoas vão precisar das carteiras, miúdo.
O Rapaz da camisola cinzenta fungou e levantou os ombros:
- 'Tá bem, mas o dinheiro faz mais falta a mim do que a eles.
- Como sabes isso?
- Sei.
Myra imaginou que era ela a ficar sem a sua carteira - nem era o dinheiro: era o frete de arranjar de novo os documentos.
- Aquelas pessoas vão ter chatices por causa dos documentos.
- Eu depois de tirar o dinheiro, deixo por aí as carteiras, não há crise. Os papéis não me servem para nada. Só dinheiro.
- Eu podia denunciar-te.
- Mas não denuncias.
- E como sabes isso?
O rapaz da camisola cinzenta olhou directamente para Myra, pela primeira vez.
- Porque se quisesses, já tinhas denunciado. Mas vieste foi falar comigo.
Ele tinha razão. A cusiosidade dela tinha sido mais forte do que a distinção entre o certo e o errado.
- Espertinho. Mas não devias andar a roubar carteiras por aí. Podes dar-te mal.
- Diz que sim. Mas não me importo. Não me apanham.
Myra ia dizer alguma coisa, mas o rapaz da camisola cinzenta adiantou-se.
- Vou-me embora. Adeus.
E antes que Myra sequer tivesse tempo de abrir a boca para responder, o pequeno carteirista desapareceu.
E Myra perdeu o comboio que esperava.
Bluerussian
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