- Posso?
- Força. - disse a morena de laranja, mexendo-se no banco, como que para permitir a passagem de Myra, o que não era preciso, pois os bancos marcavam precisamente o meio da carruagem, e estavam em frente uns aos outros, pelo que havia entre eles um espaço mais largo.
Myra sentou-se no seu lugar, em frente à morena de laranja. Ajeitou-se no banco, instalou a sua mala de mão aos seus pés, recostou-se no banco.
Era bonita, a morena de laranja. Myra tinha já reparado, no bar da estação, que ela era interessante, mas agora que estava em frente a ela, dava conta de uma beleza exótica, um pouco selvagem, mas que tinha tanto de natural como de exageradamente produzido. Era uma rapariga com cerca de 1,60, um corpo roliço mas musculado, uma pele morena de um tom dourado, bonito, mas excessivamente oleado. Exalava um perfume forte, quente, enjoativo, mas que lhe ficava bem, chamava a atenção sobre ela. Tinha um rosto redondo, uma boca carnuda e bem delineada - um sorriso muito bonito, diga-se, que mostrava uns dentes razoavelmente brancos – um narizinho perfeito, e um olhar – e que olhar! – absolutamente matador. Uns olhos negros, amendoados, rasgados, pestanudos; um olhar fixo, decidido, profundo e penetrante. Daquelas pessoas que parecem nunca ter olhares vagos, perdidos. Negros eram os seus cabelos - pintados ou não, Myra não o poderia dizer – ondulados e rebeldes, compridos, ligeiramente secos e cheios de espuma de pentear, cujo cheiro se misturava como do seu perfume.
Pena a roupa – um outfit um tanto ou quanto já fora de moda – um vestidinho de Lycra muito justo e muito curto, num laranja quase fluorescente, um decote vertiginoso, que deixava, intencionalmente, pensou Myra, completamente exposto um soutien, wonderbra sem dúvida, que lhe juntava os seios, nem muito grandes, nem muito pequenos, ao centro do decote. Sentada como estava, cruzando as pernas e inclinando-se ligeiramente para a janela do comboio, levantava ligeiramente uma das coxas mais do que seria publicamente aceitável, deixando à vista, na sua totalidade, umas pernas firmes, musculadas e impecavelmente depiladas. Trazia calçadas nos seus pezinhos pequenos e perfeitos umas sandálias altíssimas, tipo anos 60, em vinyl, com salto grosso e plataforma, exactamente da cor do vestidinho. A compor o ramalhete, um colar de pedras pequeninas pretas e brilhantes, que terminava milimetricamente no meio dos seus seios, e que fazia pendant com os seus brincos, compridos até aos ombros, e que se distinguiam do seu cabelo apenas pelo brilho maior das referidas pedras.
- Era só o que me faltava!!!!
Uma senhora de cabelo muito alto e blusa de seda azul-turquesa estava parada no corredor da carruagem, de braços cruzados e olhando quer para a morena de laranja, quer para Myra.
- Não me bastam as poucas-vergonhas à minha porta, agora ainda tenho que viajar ao lado destas! Era só o que faltava! Ó senhor revisor!
A senhora do cabelo alto já esbracejava, e o revisor corria já pela carruagem fora, na sua direcção. A morena de laranja estava absolutamente calma, apenas se notando um certo ar de desdém pela situação – olhava para a senhora do cabelo alto como se esta situação não a surpreendesse minimamente. Myra, por sua vez, estava espantadíssima, e não tinha a mínima ideia do que estava a acontecer.
- Ó minha senhora, tenha calma. – disse o revisor, esbaforido – O que é que se passa?
- Quero que me arranje outro lugar. Recuso-me a viajar ao lado destas mulheres de baixo nível. Sou uma senhora.
- O quê???? - Myra estava estarrecida.
- Deixa estar – sussurrou-lhe a morena de laranja – não adianta discutir com ela.
- Venha comigo, minha senhora, não se exalte, venho comigo. – já o revisor levava a senhora do cabelo alto, delicadamente, por um braço, pelo corredor da carruagem. Ela continuava a barafustar, mas lá foi.
- Mas o que foi isto? – perguntou Myra.
- É o costume. Esta nem é a única que faz estas cenas. Desculpa lá teres sido metida ao barulho. A conversa era comigo. Ela viu-te aqui pensou que estavas comigo, levaste por tabela. Desculpa lá.
- Mas quem raio é esta mulher?
- É simples. Esta mulher mora perto do sítio onde eu trabalho.
- E? - Dado que Myra tinha ficado com a impressão que a morena de laranja era prostituta, interessou-se pela conversa, vislumbrando a razão da raiva da senhora do cabelo alto.
- E acontece que eu trabalho na rua. De noite, percebes? Sexo por dinheiro. ‘Tás a ver?
- E o que tem isso a ver com esta mulher?
- Eu não gosto de trabalhar em sítios desertos, por isso escolho sítios onde morem pessoas. Sempre pode haver alguém que chame a bófia se ouvir gritos, sei lá. E esta mulher mora num sítio onde eu costumo “atacar”.
- Estou a ver.
- Já não é a primeira que faz cenas destas. Acontece em todo o lado: no supermercado, no centro comercial, esta malta acha que não podemos respirar o mesmo ar, ou lá o que é....
- Que estupidez.
- É. Mas uma pessoa habitua-se a viver com isso. No início a vergonha é lixada. Mas depois passa. Eu percebo que estas gajas tenham medo.
- Medo de quê?
- Elas sabem que os maridinhos delas nos visitam, e muito. Mesmo que não queiram saber deles, não querem ficar sozinhas. É mau para o social, ser largada, especialmente por causa de mulheres de rua.
- Tu deves ter uma vida difícil, não?
- Leva-se. Já foi pior. Eu até gosto do que faço, às vezes.
- Mas assim, na rua... não tens medo?
- Já tive. Mas agora tá melhor. A bófia vai passando, também.
- Posso perguntar-te como foste parar a essa... vida?
- Podes perguntar, que eu respondo: casei muito nova.
- Hã??? E que raio isso tem a ver?
- Casei aos 16 com aquele que pensei que era o homem da minha vida. Afinal, acabou por ser o homem que me põs na vida... 2 anos de casamento depois, começou com umas conversas e tal, que queria trazer uns amigos a casa, e tal, assim para umas maluqueiras na cama...
- Não pode!!!
- Pode. Eu até gostava da ideia, que eu cá sempre gostei muito da paródia – e ela dizia isto com um arzinho muito malandro – e no princípio teve piada. Mas depois, o meu querido marido deixou de participar na paródia, e eu depois percebi que ele recebia dinheiro dos amigos... e depois deixaram de ser só amigos e passaram a ser gajos ao calhas... o gajo vendia-me como se vendem trapos na feira.
- E tu aguentavas isso? Não te recusavas? Permitias?
- Pá, no princípio eu até achava graça, e olha, o dinheiro dava jeito. O pior foi quando ele quis que eu fosse para a rua, que não queria continuar aquilo em casa. Ameaçou-me, quando eu disse que recusava. Batia-me e tudo.
- A sério? E não fizeste queixa? Deixaste que ele te batesse? Continuaste com ele? Porque não o deixaste????
- Eu ainda gostava dele, na altura. Eu casei por amor, sabias?
- Como se isso justificasse o que ele te fez....
- ‘Tá feito, ‘tá feito.
- E continuas casada com ele??
- Não. Ele houve uma altura em que arranjou uma amante, e eu disse-lhe que não queria ser mulher dele. Podia continuar na rua por conta dele, mas queria o divórcio. Ele nem pensou duas vezes.... divorciámo-nos, mas eu continuei “na função” para ele.
- E nem assim te livraste dele?
- Ele na altura era mais violento. Dava medo. E o dinheiro sabia bem. Pena que ele ficasse com uma parte tão grande. Hoje estava rica. Mas hei-de conseguir.
- Caramba. Mas não pensas em deixar a profissão?
- Às vezes, mas também não sei fazer mais nada. Eu até pensei que ele se enrabichasse por outra e me deixasse em paz... mas só agora é que ele arranjou outra para a pôr a render. E não vai ficar por aqui. Mas se eu tinha medo dele, agora já não tenho. ‘Tou a fazer o um pé de meia, e ele nem sonha. Assim que tiver o suficiente, piro-me e ele nem nunca mais me põe a vista em cima. E vou fazer rios de dinheiro. Eu sou uma artista, sabes?
- Artista como?
- A mim não me interessa ser só um objecto usado pelos gajos. Gosto de os ver aos meus pés. E também gosto de dançar, e olha que danço muito bem. Eles ficam malucos. E pagam mais. Tenho safo uns trocos valentes.
- E fazes isso em segredo...
- Tenho feito, aos poucos. Só a minha colega sabe.
- Colega?
- Sim, a outra que ele arranjou para explorar.... fraca, ‘tadita. Também gostava dele. Ela já andava nas ruas, quando ele a conheceu – ele prometeu-lhe protecção, conforto... coitada. É muito medrosa, também, e tenho medo que ele aperte com ela por minha causa, e ela bufe tudo. Ele adora aterrorizá-la. Comigo já não consegue fazer isso.
- Como consegues esconder essas tuas actividades dele?
- Tem dado, porque o que lhe interessa é o dinheiro. Tenho que lhe dar algum, e ele fica contente. Hoje, por exemplo, disse-lhe que vou fazer 2 clientes a um hotel. Mas vou dançar para uns gajos, que pagam mais pela dança do que pelo sexo. Depois, se houver mais negócio para fazer... faz-se.
- Mas não deixas a rua...
- Para já, não. Mas vou deixar, quando fugir dele, e puder viver só das danças.
- A vida na rua deve ser horrível.
- Uma ‘cadito dura. Não ter protecção é muito mau.
- Sabes, eu sou a favor dos bordéis, legalizados, com condições, etc.
- Não são maus, e a segurança era maior, sim, mas a gente por conta própria ganha mais, e depois ninguém ia querer ser visto a rondar um bordel. Na rua, ou nos hotéis, é mais discreto, para o cliente.... E eu sou muito limpa, no meu trabalho. Os meus clientes não apanham cá doenças. Mas que deviam legalizar a profissão, deviam.
- Mas não tinhas que andar na rua.
- Ora, eu vou sair das ruas à mesma, logo que possa. Estou a juntar mesmo uns trocos para me tratar, e ficar impecável para a minha nova profissão.
- Tratar?
- Sim, sabes, cabelo, pele, dentes, emagrecer um ‘cadito, pôr um silicone, comprar umas roupas como deve ser, aprender estrangeiro... faz falta. Quero ser uma estrela.
- Valorização pessoal. Isso é óptimo.
Myra estava absolutamente extasiada com esta personagem que falava pelos cotovelos. Durante mais hora e meia, a morena de laranja contou muito da sua vida, do métier, dos clientes, etc. Myra fazia perguntas, dava opiniões, e ficou fã da sua interlocutora. Quando se despediram, no final da viagem, Myra pediu o número de telefone à morena de laranja, ao que esta acedeu, não sem um “mas olha lá que eu mulheres não faço, hã!!”, em tom divertido.
Bluerussian
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