quinta-feira, junho 28, 2007

Uma só lágrima,
única e dura,
corre pelo rosto sulcado, lamacento,
da vida que foge por entre as mãos.
Dias que se somem,
no nevoeiro denso do tempo,
escoando por entre as vagas do degredo,
trazem a solidão,
por entre as gentes que se acotovelam em desvario.
O esquecimento de quem existe,
o certo, e o errado,
o desamor,
o azar e a sorte,
torcem e dobram a existência de cada um,
deixando de olhar nos olhos das pessoas,
e de antever os seus anseios e mágoas.
A incúria,
ou a vã glória de ser,
apagam o existir pleno,
extinguem a bondade da alma.
Já não vemos nos outros um semelhante,
Já não tentamos antever o seu sofrimento,
nem sequer o tentamos ajudar,
antes viramos as costas antes que nos peça:
"Ajuda-me!"
Bastava olhar-lhe nos olhos.
Bastava sentir-lhe o peso dos ombros,
e da alma,
bastava querer.
(c) Bluerussian

domingo, junho 24, 2007

O vento que passa

Ventos de nortada

varrem o sentido do espírito,

corroem a dura camada de bondade,
instalando o caos da descrença.
Sociedade fútil, injusta,
carcereira de sonhos e vontades,
pessoas cinzentas e perdidas,
crianças ingratas,
que magoam deliberadamente
aquilo que deveriam curar.
Perdido, o espírito vagueia,
por entre a pedra íngreme,
fria, e dura,
rasgando a sua ténue existência
nas escarpas da Humanidade.
Perde-se. Afunda-se.
Deixa de existir.
Morre.
Não renascerá, porque é uma Fénix cansada
que desistiu de ser quem era.
(c) Bluerussian

terça-feira, junho 05, 2007

Myra # 6 Jornais e maçãs

O que há de especial na mudança de uma vida é a incerteza do futuro. Por muito que se programem as coisas, qualquer grão de areia pode mudar o curso do destino, ou simplesmente travá-lo. De qualquer modo, a vida traz cenários que impoem a mudança, e muitas vezes essa mudança é uma fuga. Ou não.
- Myra? – A voz de Ann era sumida, mole.
- Diz, Annie. – Myra falava num tom sonolento, também. Eram 10 horas da manhã, e Myra tinha-se levantado cedo, para continuar a sua busca nos classificados do jornal. Ann acordara, levantara-se da cama e viera até à sala, encontrando Myra praticamente a dormir em cima da mesa e das folhas de jornal espalhadas.
- Tão cedo? Isso é que é vontade.... Eu sou incapaz de ler as letras de um jornal antes das 11 h da manhã, e de um café bem forte.
- Deixa, que eu estou aqui perdida de sono, Ann. Mas não tenho outro remédio, tenho que me despachar a procurar, e encontrar emprego, senão a coisa corre mal. Tenho que me pôr aí na rua a calcorrear portas.
- Não pensaste a sério na proposta do Frank, pois não? – Ann sentou-se à mesa, em frente a Myra, roendo uma maçã.
- Não é que não tenha pensado – disse Myra - mas, de facto, não me pareceu que ele estivesse a falar a sério.
- E porque não estaria? Se ele te disse para lhe mandares o teu currículo, é porque há essa possibilidade, My.
- Não sei... Bem, tu lá sabes. Mas pareceu-me mais que ele estava só a tentar agradar-te. – Myra esboçava um sorrisinho maroto, ainda que sonolento, e piscara o olho a Ann.
- MYRA!!! – disse Ann, com a boca cheia de maçã.
- Ah, pois é... amiga, o homem esteve a fazer-se a ti o tempo todo. Afinal, confessa-te lá à tua amiga: - e tomou um tom exageradamente coloquial – o que se passa realmente entre vocês, indivíduos de sexo oposto, livres, desimpedidos e disponíveis?
- Nadíssima!!!!! – Ann abanava a cabeça, em sinal negativo - Absolutamente nada, minha cara My. Rien de tout. Niet. Nein. Deixa-te disso. É como diz o outro: Vai à volta, que por aí não passas....
- Pois, pois. Porque não admites?
- Porque não tenho nada para admitir. Não inventes. E mais: o Frank tem este tipo de atitude com toda a gente.
- Calculo... especialmente moças giras e cheias de bom gosto. ... ihihihihih
- Mas não só, minha cara. Lá no trabalho, toda a gente o acha um convencido, um atiradiço.
- E tu não, claro....
- Nem por isso. Quando o conheci, confesso q era a imagem que ele passava, mas com o passar do tempo, e não foi preciso muito, acho só que ele tem uma auto-estiima acima da média. Aliás, ele tem motivos para isso, não achas?
- Ééééééé.... tu acha-lo um giraço cheio de pinta, certo? E bem sucedido, e inteligente, e até posso imaginar que achas que por baixo da casca de garanhão, está um homem carinhoso, e sensível . – Ann voltou a abanar a cabeça, em sinal de desagrado. Achava desnecessária a ironia de Myra – Não te chateies, Annie. Os homens têm destas coisas – às vezes enganam: porque não poderá ser este um caso de sensibilidade encapuçada de soberba? Estou a falar a sério. Mas diz-me lá: o rapaz está mesmo sozinho no mundo ou quê?
- Vãs ironias, amiga. Com o tempo vais perceber o mesmo que eu em relação ao Frank. Tu vais ver.
- Pronto, pronto. Hei-de ver, sim senhora. Mas como é? Temos solteirão militante, ou trata-se de um sofredor crónico, rejeitado pelas mulheres? Predador ou presa?
- Caramba, da maneira como poes as coisas, parece q estamos a falar de um animal selvagem....
- Bem, dependendo do ponto de vista, se fosse até não deixava de ser abonatório em favor dele..... uiuiui!
- Tarada....
- É a vida... e a abstinência prolongada, também....
- Ora, abstinência... tu, linda e maravilhosa, desempoeirada e inteligente... puseste o cinto de castidade porque quiseste!!!
- São opções, amiga.
- Não contesto. Aí, tu é que sabes. Mas não desististe dos homens de vez, pois não?
- Não. Só estou a fazer um intervalo. Mudar de vida também significa fazer um reset nesse âmbito. Quero tudo novo. Restart.
- Ok. E porque não dar uma abébiazita aqui ao nosso amigo Frank? Faz o teu género, que eu sei.
- Ehehehehhehehe... e o teu também..... não inventes. Ambas sabemos que o moço, a ser solteiro, não vai ficar assim muito tempo. Não a olhar para ti daquela maneira, nem com essa tua disponibilidade para lhe enlevar as qualidades. ..
- MYRA!!!! Continuas a delirar. Mais: Para tua informação, o jantar de ontem foi por tua causa, e eu já te disse isto...
- Ora, ora, por minha causa... boa desculpa!!! - Myra ria-se.
- Espera um segundo – e levantou-se – só por seres maldosa, vou mostrar-te a mensagem que ele me mandou depois de sair daqui, ontem à noite – e saiu, em direcção ao quarto, para ir buscar o telemóvel.
- Ai – Myra ironizava – aposto que é uma mensagem a dizer que se apaixonou perdidamente por mim, e que hoje, impreterivelmente, ia pedir-me em casamento!!!!!!!!! - Não gozes... – Ann respondia-lhe do quarto.
- É, e hoje, aparece aí antes de almoço, estaciona o seu cavalo branco lá em baixo no poste da paragem do autocarro, e lá vem ele por aí acima, botas até ao joelho, collants e calções de balão, colete e boina à principe, com pena e tudo, pedir a minha mão em casamento, ehehehheeh!!!! – Myra ria com vontade.
- Myra, - Ann voltara, com o telemóvel na mão – agora era bem feito que fosse isso mesmo. Só para calar essa tua ironia... Ora vê lá isto e diz-me lá se o assunto é comigo!!!!!! – e estende o telemóvel a Myra, que leu o que estava no ecrã:
“Olá. Excelente jantar. Especialmente a companhia. Gostei muito da tua amiga – é mesmo solteira? Diz-me que sim. Era realmente uma pena se não fosse. Liga-me hoje para tomarmos, TODOS, um cafézinho..... BJ”
- Não posso... – Myra abria a boca de espanto.
- Ai pois é, amiga. Calas-te, agora?
- Mas... ele não me ligou nenhuma o jantar todo!
- Parece-te. Se o conhecesses, tinhas percebido que o rapaz tinha estado a observar-te o tempo todo...
- Tchééééé, o malandro!!!
- Eheheheheh, pois.
- Bem. Eu também o achei giro, e simpático e isso tudo. Mas q faz um parzinho tão lindo contigo, lá isso faz!!! – e piscou o olho a Ann.
- Não, Myra, não vás por aí. Acredites ou não, não ia dar certo, com ele.
- Hummmm.... engano-me, ou isso já esteve para ser e não foi?
- Não. Nada disso. Simplesmente não há click entre nós.... não se passa nada.
- Click?
- Sim, Myra. Aquela coisa que nos faz imaginar uma pessoa na nossa vida assim de uma maneira mais ... interventiva. Aquilo q faz arrepiar e dá tremeliques. O Frank é giro, inteligente, um pão, mas... não há click. Gosto dele como um amigo. Só isso.
- Pena. Era capaz de te fazer bem.
- Eu também estou no meu break, Myra. Foi muito tempo.
- Eu sei. E... – e foi interrompida pelo telefone de Ann.
- Sim?- Ann atendera logo – Ah, Olá, bom dia! Estávamos a falar de ti .– Myra percebera que Ann falava com Frank, e arregalara-lhe os olhos – não, não temos nada combinado. Tens alguma sugestão? – e Ann piscava o olho a Myra – acho esse óptimo! A que horas? - Myra franzia o sobrolho – muito bem. Então até logo! Beijo, outro da Myra! – e desligou – Myra, vai vestir-te. Vamos almoçar fora.
- Frank, certo?
- Certíssimo. Desejoso de te ver de novo. Aposta aí na produção, que o homem está com saudades.
- Quem é que está a ser irónica agora????
- Prova do teu próprio veneno, prova! E vai mas é vestir-te, que eu também estou a ir.
- Mas... onde, e quando?
- Um restaurante óptimo, e agora. O Frank vem buscar as damas.
- E vamos de cavalo branco, é? Cabemos os três?
- Myra.... não comeces....
- Ah, ok, claro, ele traz o coche.... que parva que eu sou, valha-me Deus... – e Ann atirou-lhe uma almofada, já ela corria para o quarto.
Bluerussian

A ânsia

Alma grande, mundo vasto,
ignorância sedenta de saber mais,
Vício discreto, droga líquida, pura,
que afoga a mágoa do que não supera
o fracasso de ser mortal.
Ah!, se a alma soubesse,
se o mundo parasse também,
se a sede se calasse...
A lágrima de dor que corre,
o suspiro que rasga o peito,
cessariam face ao entendimento,
claro, objectivo, evidente,
pelo qual se deduz que o mundo não é tudo,
nem é nada, sequer,
comparado com a magnificiência,
a plenitude, a graça e a beleza

do Universo.

Vida, alma, morte, saber,

tudo resulta, a seu tempo certo,

na existência do ser frágil humano,

que busca, mesmo sem saber,

mas sabendo - o seu próprio, e inelutável, fim.

Bluerussian, Junho 2007