Engraçado como as pessoas tentam fugir de si próprias.
No fundo, corremos todos atrás de alguma coisa, passamos a vida inteira a tentar atingir um determinado estado de existência, mas verdade seja dita, se passarmos por cima de nós próprios nessa corrida, essa meta vai ficar cada vez mais longe.
Por causa deste episódio com o rapaz da camisola cinzenta, Myra teve que seguir viagem uma hora mais tarde. Voltou a sentar-se em cima da sua mala, e voltou a observar as pessoas. pensava ainda no estranho rapaz. Mas volvida meia hora, não se sentia lá muito desperta, e estava com fome. "Caramba, ainda falta tanto... ". Olhou em volta, à procura de um lugar onde pudesse comprar qualquer coisa para comer, apetecia-lhe mesmo um chocolate.
Lá estava: um pequeno snack bar, daqueles característicos das estações de comboios, com um tipo com ar duvidoso atrás do balcão, roendo fervorosamente um palito, olhando por cima dos óculos para as meninas que passavam, fungando ruidosamente com ar machão, emproando os salientes pêlos do peito (não sem realçar o proeminente crucifixo dourado...), mas nunca deixando de vigiar de soslaio a mulher gorda de bata aos quadrados que limpava o chão à entrada do bar (e que provavelmente era sua mulher).
Divertida com a sua própria impressão do bar, Myra levantou-se, e dirigiu-se para lá. Parou na entrada, pois tinha como obstáculo o corpo enorma da mulher da bata aos quadrados, que estava de costas para ela, e não a via. Myra sussurou um educado "com licença", e a mulher voltou-se. Tinha um ar cansado. "Faxavôr, menina, passe", disse a mulher, arredando-se da entrada, com uma tentativa de esboço de sorriso, mais impedido, talvez, pelo cansaço. Myra entrou no bar, chegou-se ao balcão, e, como o senhor do palito tinha desaparecido por uma portinhola ao fundo do bar, encostou-se ao balcão, e focou a sua atenção na mulher da bata aos quadrados. Apesar do seu aspecto seboso, com o cabelo sujo, desgrenhado, muito mal contido por um elástico velho, as mãos imundas e calejadas, o seu corpo disforme, apertado naquela bata abotoada à força, a mulher devia ter sido bonita em jovem. Não que fosse velha (talvez não tivesse mais que 35 anos), até porque Myra podia adivinhar que a vida a envelhecera mais do que a idade, mas o seu rosto não era feio, ao contrário do que a sua figura anunciava ao longe. Myra reparou que a mulher da bata aos quadrados imprimia gestos bruscos à esfregona que manuseava (inutilmente, uma vez que o chão do bar poderia albergar uma vara de porcos sem qualquer tipo de problema de adaptação - por parte dos porcos), como se quisesse extravasar pensamentos que não conseguia, ou não podia, expressar por palavras. Parecia saturada com alguma coisa, cismava com algo, de certezinha absoluta. E Myra quase podia apostar que era algo relacionado com o senhor do palito...
- Faxavôre, ó menina!
Que susto! O senhor do palito tinha voltado de repente, e aguardava, esfregando as mãos e de sobrolho levantado (e um olharzinho alarve...), que Myra lhe dissesse o que queria tomar.
- Era um pastel de nata e um café, por favor.
- É p'ra já, menina!
"Estúpida!! Então e o chocolate???", pensou Myra. Por uns segundos, perguntou-se porque é que este pedido de pastel de nata e café se tinha automatizado de tal forma, que se sobrepunha a qualquer vontade real. Mas depois prestou atenção aos movimentos do senhor do palito: não fazia um gesto sequer sem: 1º - puxar as calças , que lhe ficavam a nadar, para cima, com a parte interior dos pulsos; 2º - ajeitar o cabelo, muito ralo e ensebado, usando a parte de dentro dos expositores de bebidas como espelho, com ar de um indubitável "És lindo". Engraçado foi reparar que, da mesma maneira que isto causava alguma curiosidade a Myra, causava também algum tipo de repulsa na mulher da bata aos quadrados, que tinha parado a sua inglória tarefa, para olhar para dentro do balcão, ostentando a esfregona numa mão, e uma expressão de profundo desdém no rosto. Cinco segundos depois, a mulher tinha voltado à sua pseudo-lavagem de chão, grunhindo algo que Myra não conseguiu perceber, e o senhor do palito tinha voltado com o pastel de nata e o café. Começando a dedicar-se ao pastel de nata, Myra olhou em volta, e reparou que havia mais gente no bar: um tipo a teclar furiosamente num computador portátil, e duas raparigas, que deviam ter interrompido a conversa para observar Myra, mas que a haviam retomado. Eram engraçadas, as raparigas: uma, baixinha, morena, com os cabelos muito crespos, muito pretos, roliça, vestida de cor de laranja da cabeça aos pés; outra, muito alta,muito branca, muito magra e muito loura (com todo o ar de ser oxigenada), vestida de preto. Myra reparou que havia duas malas enormes ao pé das duas raparigas. Também reparou que elas conversavam muito alto, e concentrou-se para tentar perceber a conversa.
- Vais safar-te muito bem, com este trabalhinho.
- É capaz, pá. Calhava bem receber uns bons trocos agora.
- Disseste-lhe que ias?
- Achas que sou maluca? Se lhe dissesse, das duas uma: ou levava uma sova de partir muitos dentes, ou ficava sem a massa toda.
- Tu és maluca. Ele vai acabar por descobrir e tu 'tás feita.
- Olha, só se tu lhe disseres...
- Não sejas parva.
- Não sejas TU parva. Se lhe dizes, quem leva uma sova és tu, garanto-te.
- Ainda vais arranjar maneira é de levarmos porrada as duas. Ele não brinca, e tu sabes disso. Eu nem devia estar aqui. Se ele sabe...
- Rai's parta os chulos.
- Mas se não fosse ele...
- Se não fosse ele??? Olha, se não fosse ele, eu não andava aí na rua feita escrava, a levar com gajos porcos em barda, para ficar com uma miséria do que arranco aos sacanas.
- Podia ser pior...
- Pois podia. Ele podia nem nos deixar dinheiro p´rá comida, né? Deixa-te de merdas.
- Tá, e queres fazer o quê? Fugir?
- Pode ser que até fuja. Deixa-me juntar umas massas, e vou p'ra Espanha, ou p'rá Holanda, sei lá.
- Passas-te. Ele encontra-te.
- Ele não é Deus. E livra-te de lhe contar que vou fazer este servicinho por fora.
- Eu não conto. Não quero problemas.
- És muito medrosa. Vais querer sustentá-lo com o que ganhas a vender o corpo na rua toda a vida? E isso que queres? Pois eu não quero. Se tenho que viver disto, ao menos quero o guito todo p'ra mim. E 'tou farta de andar na rua. Quero uma vida melhor.
- Gostas mais dessas coisas dos shows, né? Mas vais pr'á cama com eles na mesma...
- Mas faço com que eles me desejem, deixo-os doidos. E para mim, é muito melhor de suportar, assim. Sou uma artista.
- Gostas é de pensar assim. No fundo, vendes-te na mesma.
- E depois? Cada um vende a mercadoria como quer, e como pode. E olha, tenho que me ir mas é embora, que o comboio não espera.
- Vai, amiga, e boa sorte.
- Vais já para a rua?
- Não, ligaram da pensão, têm lá um cliente p'ra mim daqui a bocado. Acho que é o do costume.
- Ainda te casas com ele, mas é. Isso é amor...
- Oh, não gozes.
- Vá, miga, cá um abracinho, que a vedeta aqui tem que ir trabalhar.
- Xau, boa sorte.
E abraçaram-se. A que ia partir no comboio, era a morena de laranja, a que ficava era a loura. "Prostitutas", pensou Myra. "Como será a vida delas?"
Olhou para o relógio, e quase que deu um pulo - o COMBOIO!!! Pediu apressadamente um chocolate ao senhor do palito, pagou a despesa e saiu a correr porta fora, balbuciando um "Boa tarde" à pressa para a mulher da bata aos quadrados. Chegou ao pé da sua mala, arrastou-a a correr pela estação fora, enquanto ouvia anunciar que o seu comboio ia partir.
Mas ainda lá estava, o comboio. Myra entrou, esbaforida, deixou a mala à entrada da carruagem, e procurou o seu lugar. Enquanto via a sequência dos números dos lugares, e se ia aproximando do seu, reparou numa cabeleira negra, crespa, mais à frente. Verificou depois que o seu lugar era mesmo em frente da dona da cabeleira negra e crespa.
Era ela, a morena de laranja.
Bluerussian
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