segunda-feira, julho 31, 2006

Myra #4. Ann

Myra chegara ao seu destino, a morena de laranja ainda seguia viagem.
Distraída com a conversa, Myra quase que não prestava atenção aos avisos que soavam pela carruagem, a cada estação ou apeadeiro. Mas num pequeno momento de silêncio, raro entre aquelas duas passageiras, Myra lá ouviu proclamar em voz rouca e gutural o nome do seu destino.
Depois de uma despedida atabalhoada, Myra agarrou na sua mala, e saiu do comboio. Parou no meio do átrio da estação, pousou a mala, e olhou para ambos os lados. Sempre gostara daquele turbilhão de gente a sair e entrar das estações de comboios, nas horas de chegadas e partidas. Sentou-se em cima da mala e esperou, de olhar perdido e pensamento no infinito.
- Myra!!!!
Tinham passado cerca de 20 minutos. Aquela voz, ainda que não a ouvisse havia muito tempo, era-lhe bem familiar.
- Annie!!!!! – e Myra levantou-se e desatou a correr na direcção de quem a chamava – Caramba, pensava que nunca mais te via!!!
Lá estava ela, a sua amiga Ann, que conhecera, havia uma eternidade, nos tempos de faculdade. Abraçaram-se com força.
Ann era uma mulher muito bonita mesmo, mas de uma beleza que tinha tanto de discreta como de incadescente. Era ruiva, de cabelos rebeldes, pele branca, mas não pálida, e olhos castanhos esverdeados. Como era já meio da primavera, começava, a aparecer sardas no rosto dela, o que lhe dava um ar traquina. Parecia uma miúda, apesar dos seus quase 30 anos. Nos tempos de faculdade, quando Myra a conhecera, Ann era quase gordinha, usava óculos e vestia roupa muito larga, mas o tempo tinha-a feito uma mulher de excelente compleição física, com um porte absolutamente elegante. Vestia-se de forma muito simples, o que não chamava grande atenção sobre si. Mas de facto, quando se olhava bem para ela, não se conseguia mais desviar o olhar - um rosto perfeito, simpático, sorridente, doce e altivo ao mesmo tempo, uma atitude positiva, segura, uma aspecto cuidado e negligé, ao mesmo tempo, bom gosto. Nestes últimos anos, quando estava na companhia de Ann, Myra divertia-se a reparar nos homens que inevitavelmente olhavam segunda vez para ela, Ann - era sempre assim: passavam, olhavam distraídamente, desviavam o olhar, mas voltavam sempre a cabeça para olhar de novo. Havia qualquer coisa em Ann que chamava discretamente a atenção, e era difícil definir exactamente o quê. É como se a rodeasse uma aura de qualquer coisa de muito positivo, sempre.
Nos tempos da faculdade, ainda Ann não chamava tanta atenção sobre si, conhecera aquele que era o amor da sua vida, e com ele ficara até então. Eram felizes, divertidos, amorosos, ambos. Perfeitos um para o outro. Myra adorava a companhia deles, e aguardava o esperado casamento no ano seguinte.
- Annie, pá, tinha mesmo saudades tuas!!!
- Oh, amiga, também eu! Deixa-me olhar para ti. – e chegou-se para trás, para poder observar Myra da cabeça aos pés – Sempre na mesma!! Gira como sempre!!!
- EEEhhhh!!! Parva. Tu é que estás impecável!
- Deixa-te de salamaleques. Vamos mas é embora daqui, que estás com cara de cansada e com fome.
- Por acaso. Bem, mas tem sido uma viagem cheia de coisas engraçadas.
- Ok, vai contando, mas vamos andando para o carro.
E enquanto se dirigiam para o carro de Ann, entravam e arrancavam dali, Myra foi contando os seus episódios daquele dia.
Depois de muito blábláblá sobe o rapaz da camisola cinzenta, o bar da estação e a morena de laranja, Ann começou à procura de um sítio para estacionar, uma vez que já estavam a chegar perto de sua casa.
- Bem, Myra, fiquei mesmo surpreendida quando me disseste que querias vir para cá. E ainda bem que vieste, vai ser muito bom ter-te por perto de novo, mas vais ter que me contar o que se passou, para te fazer deixar tudo para trás e mudar de cidade!
- Depois conto, Annie. Neste momento ainda não sou lá muito capaz de falar sobe o assunto... e obrigadão pela estadia. Prometo que assim que arranjar um emprego e depois poiso para mim, vos deixo em paz.
- Ah, nem penses nisso; ainda por cima, já não é “nós”. Sou mesmo só “eu”, lá em casa...
- Hã!!!???
- É isso mesmo que tu ouviste.
- Não pode!!! Mas e o teu “mais-que-tudo”, o homem da tua vida, o teu futuro marido? Que raio se passa?
- Ora... o costume.
- Ann, estou a falar a sério. O que se passa? Vocês não iam casar para o ano?
- Íamos, disseste bem. Já não vamos. Chegou ao fim, foi o que foi.
- Annie, como é que uma relação de 5 anos chega assim ao fim? Vocês eram o casal mais perfeito que alguma vez conheci. Sempre superaram as vossas pendengas, e gostavam imenso um do outro. Viviam juntos, e estavam tão bem!! Que raio se passou?
- Pois era assim, mas desta vez foi demais.
- ihhhhh, já vi quem pôs a pata na poça...
- E viste muito bem.
- Mas e então, que foi que ele fez?
- Vamos subir, que já te conto, não é preciso ficarmos aqui na rua a conversar.
- Ai que raiva! Só tu para matares uma pessoa de curiosidade, assim. Vamos lá.
E saíram do carro, entrando depois no prédio onde Ann morava, e no elevador. Como o elevador levava mais pessoas, vizinhos, e elas não falavam.
- Vá, desbobina. – disse Myra, impacientemente, logo que entraram na casa de Ann.
- Vamos para a cozinha, que vou fazer umas sandes para nós.
- GGGRRRRRR!!! Que raiva! Só estás a engonhar!
- Vá, vamos lá. – e foram. E enquanto preparavam alguma coisa para comer, continuavam a conversa.
- Pois é, Myra, lembras-te de eu ter dito que ele tinha conseguido ser aceite para dar aulas na Universidade?
- Sim. E depois?
- Fiquei contente, assim podíamos começar a organizar a nossa vidita.
- Claro.
- É. E estava a correr tudo muito bem, até que ele se envolveu com uma aluna. – Ann dissera isto de cabeça baixa, olhos postos no chão.
- Não! Não pode ser. Ele era a última pessoa que eu imaginaria capaz disso.
- Verdade, verdadinha. Eu também acreditava que ele era diferente, mas no fundo, são mesmo todos iguais.
- Mas como soubeste disso?
- Olha, descobri da maneira mais parva.
- Conta!!!
- Dia dos namorados, estás a ver? Achei na pasta dele, por acaso um cartão cheio de coraçõezinhos, assinado por ela. Coisas típicas de miúdas. Mas fiquei desconfiada.
- Coisa mais pirosa.
- Pois, mas pelo visto ele gostava, já que guardou religiosamente o cartão.... bem, como fiquei com a pulga atrás da orelha, foi uma questão de começar a ficar mais atenta. Internet até às tantas, “aulas” até tarde, telefonemas que ele não atendia ao pé de mim, pérolas dessas... cheguei ao ponto de lhe fiscalizar o telemóvel e os e-mails. Não é que me orgulhe disso, mas eu tinha que ter certeza!
- E quando tiveste essa certeza?
- Há coisa de 3 meses, achei que já tinha visto e lido o suficiente sobre aquele romance, e fartei-me de assistir de camarote. Confrontei-o.
- Ena! E ele?
- Negou, claro. Mas quando lhe disse o que sabia, ele não teve hipótese.
- Os homens, realmente....
- Eu não podia continuar com ele. Era insustentável. Ele ainda tentou voltar, desculpar-se, atribuir as culpas à miúda... mas isso ainda piorou as coisas.
- Calculo que sim. Eu também pensaria assim. Mas caramba, vocês tinham uma relação tão bonita...
- Que acabou, e não da melhor maneira, paciência. E assim, cá estou eu, solteiríssima de novo.
- Que é feito dele?
- Ora, saiu de casa, mas penso que vive sozinho, ainda.
- E hipóteses de uma reconciliação??
- Nunca. Tu conheces-me. Sabes muito bem que não volto atrás nestas coisas.
- Mas, ouve lá, amiga, tu estás bem?
- Conformada, pelo menos. Não posso esquecer um homem que amei perdidamente durante 5 anos e com quem imaginei o resto da minha vida, não é?
- Pois, provavelmente... Mas olha: agora estou cá eu. Estamos juntas, e vai ser como nos bons velhos tempos, amiga – e Myra abraçou Ann – vamos esquecer essas coisas em três tempos!!!
- AHHH!! Então a causa desta tua fuga tem moço metido nisso....
- Inevitavelmente, não é? Mas isso é outra conversa. Deixa-me digerir esta tua novidade, primeiro...
- Mas não me escapas, que quero saber tudo.
- A seu tempo, amiga, a seu tempo.
Bluerussian

terça-feira, julho 25, 2006

Deixa-te ficar na minha casa

Tenho livros e papéis,
Espalhados pelo chão.
A poeira de uma vida
deve ter algum sentido!
Uma pista, um sinal,
de qualquer recordação,
uma frase onde te encontro
e me deixa comovido.
Guardo na palma da mão
o calor dos objectos,
com as datas e locais,
porque brincas, porque ris...
e depois o arrepio,
a memória dos afectos...
que me deixa mais feliz!
Deixa-te ficar na minha casa,
há janelas que tu não abriste...
O luar espera por ti,
quando for a maré vaza...
ainda tens que me dizer
porque é que nunca partiste.
Está na mesma esse jardim,
com vista sobre a cidade,
onde fazia de conta
que escapava do presente...
Qualquer coisa que ficou,
que é da nossa eternidade...
Afinal, de eternamente.
Filarmónica do Gil

sexta-feira, julho 21, 2006

Myra #3. A viagem no comboio

- Posso?
- Força. - disse a morena de laranja, mexendo-se no banco, como que para permitir a passagem de Myra, o que não era preciso, pois os bancos marcavam precisamente o meio da carruagem, e estavam em frente uns aos outros, pelo que havia entre eles um espaço mais largo.
Myra sentou-se no seu lugar, em frente à morena de laranja. Ajeitou-se no banco, instalou a sua mala de mão aos seus pés, recostou-se no banco.
Era bonita, a morena de laranja. Myra tinha já reparado, no bar da estação, que ela era interessante, mas agora que estava em frente a ela, dava conta de uma beleza exótica, um pouco selvagem, mas que tinha tanto de natural como de exageradamente produzido. Era uma rapariga com cerca de 1,60, um corpo roliço mas musculado, uma pele morena de um tom dourado, bonito, mas excessivamente oleado. Exalava um perfume forte, quente, enjoativo, mas que lhe ficava bem, chamava a atenção sobre ela. Tinha um rosto redondo, uma boca carnuda e bem delineada - um sorriso muito bonito, diga-se, que mostrava uns dentes razoavelmente brancos – um narizinho perfeito, e um olhar – e que olhar! – absolutamente matador. Uns olhos negros, amendoados, rasgados, pestanudos; um olhar fixo, decidido, profundo e penetrante. Daquelas pessoas que parecem nunca ter olhares vagos, perdidos. Negros eram os seus cabelos - pintados ou não, Myra não o poderia dizer – ondulados e rebeldes, compridos, ligeiramente secos e cheios de espuma de pentear, cujo cheiro se misturava como do seu perfume.
Pena a roupa – um outfit um tanto ou quanto já fora de moda – um vestidinho de Lycra muito justo e muito curto, num laranja quase fluorescente, um decote vertiginoso, que deixava, intencionalmente, pensou Myra, completamente exposto um soutien, wonderbra sem dúvida, que lhe juntava os seios, nem muito grandes, nem muito pequenos, ao centro do decote. Sentada como estava, cruzando as pernas e inclinando-se ligeiramente para a janela do comboio, levantava ligeiramente uma das coxas mais do que seria publicamente aceitável, deixando à vista, na sua totalidade, umas pernas firmes, musculadas e impecavelmente depiladas. Trazia calçadas nos seus pezinhos pequenos e perfeitos umas sandálias altíssimas, tipo anos 60, em vinyl, com salto grosso e plataforma, exactamente da cor do vestidinho. A compor o ramalhete, um colar de pedras pequeninas pretas e brilhantes, que terminava milimetricamente no meio dos seus seios, e que fazia pendant com os seus brincos, compridos até aos ombros, e que se distinguiam do seu cabelo apenas pelo brilho maior das referidas pedras.
- Era só o que me faltava!!!!
Uma senhora de cabelo muito alto e blusa de seda azul-turquesa estava parada no corredor da carruagem, de braços cruzados e olhando quer para a morena de laranja, quer para Myra.
- Não me bastam as poucas-vergonhas à minha porta, agora ainda tenho que viajar ao lado destas! Era só o que faltava! Ó senhor revisor!
A senhora do cabelo alto já esbracejava, e o revisor corria já pela carruagem fora, na sua direcção. A morena de laranja estava absolutamente calma, apenas se notando um certo ar de desdém pela situação – olhava para a senhora do cabelo alto como se esta situação não a surpreendesse minimamente. Myra, por sua vez, estava espantadíssima, e não tinha a mínima ideia do que estava a acontecer.
- Ó minha senhora, tenha calma. – disse o revisor, esbaforido – O que é que se passa?
- Quero que me arranje outro lugar. Recuso-me a viajar ao lado destas mulheres de baixo nível. Sou uma senhora.
- O quê???? - Myra estava estarrecida.
- Deixa estar – sussurrou-lhe a morena de laranja – não adianta discutir com ela.
- Venha comigo, minha senhora, não se exalte, venho comigo. – já o revisor levava a senhora do cabelo alto, delicadamente, por um braço, pelo corredor da carruagem. Ela continuava a barafustar, mas lá foi.
- Mas o que foi isto? – perguntou Myra.
- É o costume. Esta nem é a única que faz estas cenas. Desculpa lá teres sido metida ao barulho. A conversa era comigo. Ela viu-te aqui pensou que estavas comigo, levaste por tabela. Desculpa lá.
- Mas quem raio é esta mulher?
- É simples. Esta mulher mora perto do sítio onde eu trabalho.
- E? - Dado que Myra tinha ficado com a impressão que a morena de laranja era prostituta, interessou-se pela conversa, vislumbrando a razão da raiva da senhora do cabelo alto.
- E acontece que eu trabalho na rua. De noite, percebes? Sexo por dinheiro. ‘Tás a ver?
- E o que tem isso a ver com esta mulher?
- Eu não gosto de trabalhar em sítios desertos, por isso escolho sítios onde morem pessoas. Sempre pode haver alguém que chame a bófia se ouvir gritos, sei lá. E esta mulher mora num sítio onde eu costumo “atacar”.
- Estou a ver.
- Já não é a primeira que faz cenas destas. Acontece em todo o lado: no supermercado, no centro comercial, esta malta acha que não podemos respirar o mesmo ar, ou lá o que é....
- Que estupidez.
- É. Mas uma pessoa habitua-se a viver com isso. No início a vergonha é lixada. Mas depois passa. Eu percebo que estas gajas tenham medo.
- Medo de quê?
- Elas sabem que os maridinhos delas nos visitam, e muito. Mesmo que não queiram saber deles, não querem ficar sozinhas. É mau para o social, ser largada, especialmente por causa de mulheres de rua.
- Tu deves ter uma vida difícil, não?
- Leva-se. Já foi pior. Eu até gosto do que faço, às vezes.
- Mas assim, na rua... não tens medo?
- Já tive. Mas agora tá melhor. A bófia vai passando, também.
- Posso perguntar-te como foste parar a essa... vida?
- Podes perguntar, que eu respondo: casei muito nova.
- Hã??? E que raio isso tem a ver?
- Casei aos 16 com aquele que pensei que era o homem da minha vida. Afinal, acabou por ser o homem que me põs na vida... 2 anos de casamento depois, começou com umas conversas e tal, que queria trazer uns amigos a casa, e tal, assim para umas maluqueiras na cama...
- Não pode!!!
- Pode. Eu até gostava da ideia, que eu cá sempre gostei muito da paródia – e ela dizia isto com um arzinho muito malandro – e no princípio teve piada. Mas depois, o meu querido marido deixou de participar na paródia, e eu depois percebi que ele recebia dinheiro dos amigos... e depois deixaram de ser só amigos e passaram a ser gajos ao calhas... o gajo vendia-me como se vendem trapos na feira.
- E tu aguentavas isso? Não te recusavas? Permitias?
- Pá, no princípio eu até achava graça, e olha, o dinheiro dava jeito. O pior foi quando ele quis que eu fosse para a rua, que não queria continuar aquilo em casa. Ameaçou-me, quando eu disse que recusava. Batia-me e tudo.
- A sério? E não fizeste queixa? Deixaste que ele te batesse? Continuaste com ele? Porque não o deixaste????
- Eu ainda gostava dele, na altura. Eu casei por amor, sabias?
- Como se isso justificasse o que ele te fez....
- ‘Tá feito, ‘tá feito.
- E continuas casada com ele??
- Não. Ele houve uma altura em que arranjou uma amante, e eu disse-lhe que não queria ser mulher dele. Podia continuar na rua por conta dele, mas queria o divórcio. Ele nem pensou duas vezes.... divorciámo-nos, mas eu continuei “na função” para ele.
- E nem assim te livraste dele?
- Ele na altura era mais violento. Dava medo. E o dinheiro sabia bem. Pena que ele ficasse com uma parte tão grande. Hoje estava rica. Mas hei-de conseguir.
- Caramba. Mas não pensas em deixar a profissão?
- Às vezes, mas também não sei fazer mais nada. Eu até pensei que ele se enrabichasse por outra e me deixasse em paz... mas só agora é que ele arranjou outra para a pôr a render. E não vai ficar por aqui. Mas se eu tinha medo dele, agora já não tenho. ‘Tou a fazer o um pé de meia, e ele nem sonha. Assim que tiver o suficiente, piro-me e ele nem nunca mais me põe a vista em cima. E vou fazer rios de dinheiro. Eu sou uma artista, sabes?
- Artista como?
- A mim não me interessa ser só um objecto usado pelos gajos. Gosto de os ver aos meus pés. E também gosto de dançar, e olha que danço muito bem. Eles ficam malucos. E pagam mais. Tenho safo uns trocos valentes.
- E fazes isso em segredo...
- Tenho feito, aos poucos. Só a minha colega sabe.
- Colega?
- Sim, a outra que ele arranjou para explorar.... fraca, ‘tadita. Também gostava dele. Ela já andava nas ruas, quando ele a conheceu – ele prometeu-lhe protecção, conforto... coitada. É muito medrosa, também, e tenho medo que ele aperte com ela por minha causa, e ela bufe tudo. Ele adora aterrorizá-la. Comigo já não consegue fazer isso.
- Como consegues esconder essas tuas actividades dele?
- Tem dado, porque o que lhe interessa é o dinheiro. Tenho que lhe dar algum, e ele fica contente. Hoje, por exemplo, disse-lhe que vou fazer 2 clientes a um hotel. Mas vou dançar para uns gajos, que pagam mais pela dança do que pelo sexo. Depois, se houver mais negócio para fazer... faz-se.
- Mas não deixas a rua...
- Para já, não. Mas vou deixar, quando fugir dele, e puder viver só das danças.
- A vida na rua deve ser horrível.
- Uma ‘cadito dura. Não ter protecção é muito mau.
- Sabes, eu sou a favor dos bordéis, legalizados, com condições, etc.
- Não são maus, e a segurança era maior, sim, mas a gente por conta própria ganha mais, e depois ninguém ia querer ser visto a rondar um bordel. Na rua, ou nos hotéis, é mais discreto, para o cliente.... E eu sou muito limpa, no meu trabalho. Os meus clientes não apanham cá doenças. Mas que deviam legalizar a profissão, deviam.
- Mas não tinhas que andar na rua.
- Ora, eu vou sair das ruas à mesma, logo que possa. Estou a juntar mesmo uns trocos para me tratar, e ficar impecável para a minha nova profissão.
- Tratar?
- Sim, sabes, cabelo, pele, dentes, emagrecer um ‘cadito, pôr um silicone, comprar umas roupas como deve ser, aprender estrangeiro... faz falta. Quero ser uma estrela.
- Valorização pessoal. Isso é óptimo.
Myra estava absolutamente extasiada com esta personagem que falava pelos cotovelos. Durante mais hora e meia, a morena de laranja contou muito da sua vida, do métier, dos clientes, etc. Myra fazia perguntas, dava opiniões, e ficou fã da sua interlocutora. Quando se despediram, no final da viagem, Myra pediu o número de telefone à morena de laranja, ao que esta acedeu, não sem um “mas olha lá que eu mulheres não faço, hã!!”, em tom divertido.
Bluerussian

segunda-feira, julho 17, 2006

A máscara

Todos nós usamos máscaras. Todos, a todo o momento e por alguma razão, escondemos algo dos outros. É mais fácil assim, porque julgamos que assim levamos avante, mais facilmente, os nossos propósitos, ou pelo menos, julgamos que assim não nos prejudicamos face ao nosso semelhante.
O mundo parece um eterno carnaval - mas um carnaval de entrudo, dado o ridículo da maioria das situações. Perde-se, a maior parte das vezes, a noção da verdade.
E é pena. Porque tudo poderia ser muito melhor.

domingo, julho 16, 2006

Segredo

Olho nos teus olhos e vejo
aquilo que me traz de volta ao meu mundo.
Dou voltas ao pensamento,
tentando encontrar a explicação
para o êxtase que experimento quando te posso tocar.
Não encontro.
Não a poderia encontrar,
porque simplesmente não existe.
Vejo a tua alma, sinto a tua pele,
quero-te,
em todos os segundos em que respiro.
Tento aprisionar a tua imagem,
te-la só para mim,
mas é demasiado cheia de luz
e não cabe na minha alma;
pairas à minha volta, a cada passo que dou.
Vivo a ânsia eterna de de ter mais e mais,
de ser tua, de poder partilhar da tua aura de força,
de libertar todo este torpor que me aprisiona o coração,
e me impede de te dizer o que sinto.
Bluerussian 14/06/2006, 00h24m

quinta-feira, julho 13, 2006

Myra #2. O Snack-Bar da Estação de Comboios

Engraçado como as pessoas tentam fugir de si próprias.
No fundo, corremos todos atrás de alguma coisa, passamos a vida inteira a tentar atingir um determinado estado de existência, mas verdade seja dita, se passarmos por cima de nós próprios nessa corrida, essa meta vai ficar cada vez mais longe.
Por causa deste episódio com o rapaz da camisola cinzenta, Myra teve que seguir viagem uma hora mais tarde. Voltou a sentar-se em cima da sua mala, e voltou a observar as pessoas. pensava ainda no estranho rapaz. Mas volvida meia hora, não se sentia lá muito desperta, e estava com fome. "Caramba, ainda falta tanto... ". Olhou em volta, à procura de um lugar onde pudesse comprar qualquer coisa para comer, apetecia-lhe mesmo um chocolate.
Lá estava: um pequeno snack bar, daqueles característicos das estações de comboios, com um tipo com ar duvidoso atrás do balcão, roendo fervorosamente um palito, olhando por cima dos óculos para as meninas que passavam, fungando ruidosamente com ar machão, emproando os salientes pêlos do peito (não sem realçar o proeminente crucifixo dourado...), mas nunca deixando de vigiar de soslaio a mulher gorda de bata aos quadrados que limpava o chão à entrada do bar (e que provavelmente era sua mulher).
Divertida com a sua própria impressão do bar, Myra levantou-se, e dirigiu-se para lá. Parou na entrada, pois tinha como obstáculo o corpo enorma da mulher da bata aos quadrados, que estava de costas para ela, e não a via. Myra sussurou um educado "com licença", e a mulher voltou-se. Tinha um ar cansado. "Faxavôr, menina, passe", disse a mulher, arredando-se da entrada, com uma tentativa de esboço de sorriso, mais impedido, talvez, pelo cansaço. Myra entrou no bar, chegou-se ao balcão, e, como o senhor do palito tinha desaparecido por uma portinhola ao fundo do bar, encostou-se ao balcão, e focou a sua atenção na mulher da bata aos quadrados. Apesar do seu aspecto seboso, com o cabelo sujo, desgrenhado, muito mal contido por um elástico velho, as mãos imundas e calejadas, o seu corpo disforme, apertado naquela bata abotoada à força, a mulher devia ter sido bonita em jovem. Não que fosse velha (talvez não tivesse mais que 35 anos), até porque Myra podia adivinhar que a vida a envelhecera mais do que a idade, mas o seu rosto não era feio, ao contrário do que a sua figura anunciava ao longe. Myra reparou que a mulher da bata aos quadrados imprimia gestos bruscos à esfregona que manuseava (inutilmente, uma vez que o chão do bar poderia albergar uma vara de porcos sem qualquer tipo de problema de adaptação - por parte dos porcos), como se quisesse extravasar pensamentos que não conseguia, ou não podia, expressar por palavras. Parecia saturada com alguma coisa, cismava com algo, de certezinha absoluta. E Myra quase podia apostar que era algo relacionado com o senhor do palito...
- Faxavôre, ó menina!
Que susto! O senhor do palito tinha voltado de repente, e aguardava, esfregando as mãos e de sobrolho levantado (e um olharzinho alarve...), que Myra lhe dissesse o que queria tomar.
- Era um pastel de nata e um café, por favor.
- É p'ra já, menina!
"Estúpida!! Então e o chocolate???", pensou Myra. Por uns segundos, perguntou-se porque é que este pedido de pastel de nata e café se tinha automatizado de tal forma, que se sobrepunha a qualquer vontade real. Mas depois prestou atenção aos movimentos do senhor do palito: não fazia um gesto sequer sem: 1º - puxar as calças , que lhe ficavam a nadar, para cima, com a parte interior dos pulsos; 2º - ajeitar o cabelo, muito ralo e ensebado, usando a parte de dentro dos expositores de bebidas como espelho, com ar de um indubitável "És lindo". Engraçado foi reparar que, da mesma maneira que isto causava alguma curiosidade a Myra, causava também algum tipo de repulsa na mulher da bata aos quadrados, que tinha parado a sua inglória tarefa, para olhar para dentro do balcão, ostentando a esfregona numa mão, e uma expressão de profundo desdém no rosto. Cinco segundos depois, a mulher tinha voltado à sua pseudo-lavagem de chão, grunhindo algo que Myra não conseguiu perceber, e o senhor do palito tinha voltado com o pastel de nata e o café. Começando a dedicar-se ao pastel de nata, Myra olhou em volta, e reparou que havia mais gente no bar: um tipo a teclar furiosamente num computador portátil, e duas raparigas, que deviam ter interrompido a conversa para observar Myra, mas que a haviam retomado. Eram engraçadas, as raparigas: uma, baixinha, morena, com os cabelos muito crespos, muito pretos, roliça, vestida de cor de laranja da cabeça aos pés; outra, muito alta,muito branca, muito magra e muito loura (com todo o ar de ser oxigenada), vestida de preto. Myra reparou que havia duas malas enormes ao pé das duas raparigas. Também reparou que elas conversavam muito alto, e concentrou-se para tentar perceber a conversa.
- Vais safar-te muito bem, com este trabalhinho.
- É capaz, pá. Calhava bem receber uns bons trocos agora.
- Disseste-lhe que ias?
- Achas que sou maluca? Se lhe dissesse, das duas uma: ou levava uma sova de partir muitos dentes, ou ficava sem a massa toda.
- Tu és maluca. Ele vai acabar por descobrir e tu 'tás feita.
- Olha, só se tu lhe disseres...
- Não sejas parva.
- Não sejas TU parva. Se lhe dizes, quem leva uma sova és tu, garanto-te.
- Ainda vais arranjar maneira é de levarmos porrada as duas. Ele não brinca, e tu sabes disso. Eu nem devia estar aqui. Se ele sabe...
- Rai's parta os chulos.
- Mas se não fosse ele...
- Se não fosse ele??? Olha, se não fosse ele, eu não andava aí na rua feita escrava, a levar com gajos porcos em barda, para ficar com uma miséria do que arranco aos sacanas.
- Podia ser pior...
- Pois podia. Ele podia nem nos deixar dinheiro p´rá comida, né? Deixa-te de merdas.
- Tá, e queres fazer o quê? Fugir?
- Pode ser que até fuja. Deixa-me juntar umas massas, e vou p'ra Espanha, ou p'rá Holanda, sei lá.
- Passas-te. Ele encontra-te.
- Ele não é Deus. E livra-te de lhe contar que vou fazer este servicinho por fora.
- Eu não conto. Não quero problemas.
- És muito medrosa. Vais querer sustentá-lo com o que ganhas a vender o corpo na rua toda a vida? E isso que queres? Pois eu não quero. Se tenho que viver disto, ao menos quero o guito todo p'ra mim. E 'tou farta de andar na rua. Quero uma vida melhor.
- Gostas mais dessas coisas dos shows, né? Mas vais pr'á cama com eles na mesma...
- Mas faço com que eles me desejem, deixo-os doidos. E para mim, é muito melhor de suportar, assim. Sou uma artista.
- Gostas é de pensar assim. No fundo, vendes-te na mesma.
- E depois? Cada um vende a mercadoria como quer, e como pode. E olha, tenho que me ir mas é embora, que o comboio não espera.
- Vai, amiga, e boa sorte.
- Vais já para a rua?
- Não, ligaram da pensão, têm lá um cliente p'ra mim daqui a bocado. Acho que é o do costume.
- Ainda te casas com ele, mas é. Isso é amor...
- Oh, não gozes.
- Vá, miga, cá um abracinho, que a vedeta aqui tem que ir trabalhar.
- Xau, boa sorte.
E abraçaram-se. A que ia partir no comboio, era a morena de laranja, a que ficava era a loura. "Prostitutas", pensou Myra. "Como será a vida delas?"
Olhou para o relógio, e quase que deu um pulo - o COMBOIO!!! Pediu apressadamente um chocolate ao senhor do palito, pagou a despesa e saiu a correr porta fora, balbuciando um "Boa tarde" à pressa para a mulher da bata aos quadrados. Chegou ao pé da sua mala, arrastou-a a correr pela estação fora, enquanto ouvia anunciar que o seu comboio ia partir.
Mas ainda lá estava, o comboio. Myra entrou, esbaforida, deixou a mala à entrada da carruagem, e procurou o seu lugar. Enquanto via a sequência dos números dos lugares, e se ia aproximando do seu, reparou numa cabeleira negra, crespa, mais à frente. Verificou depois que o seu lugar era mesmo em frente da dona da cabeleira negra e crespa.
Era ela, a morena de laranja.
Bluerussian

segunda-feira, julho 10, 2006

Caos da Alma Negra

Vazio.

Espaço vazio, negro.

Negro de breu,

Paris apagada.

Silêncio.

Voz muda, presa,

fraca, nula.

Olhar sem vida,

mãos sem nada,

alma vazia.

Existência sem dó

nem sentido, nem rumo,

nem melodia.

Vida perdida,

deserto de areia fria,

mar negro.

Negro.

Vazio.

Silêncio.

Bluerussian 27 Fev 2006 1:01 am

quinta-feira, julho 06, 2006

Myra #1. A Estação

Myra estava sentada em cima da sua própria mala, no átrio de uma estação de comboios. Gostava de sempre de chegar mais cedo pelo menos meia hora, porque sentia um prazer especial em observar as pessoas, tentando adivinhar para onde iriam. Perdia-se em considerações que iam desde a certeza de que aquele senhor baixinho e de bigode iria para a sua aldeia, dada "trouxa" enfiada à pressa dentro de um saco desportivo, com as pontas de fora, e a dúvida se aquele casal de jovenzíssimos namorados iria passar o fim de semana numa pousada, ou se iria cada um para a casa de sua mãe, dada a sofreguidão dos beijos e as malas enormes.
Myra perguntava-se se estaria ali alguém que a observasse a ela própria com o mesmo objectivo. Olhava em volta. Não, ninguém parecia reparar nela. As pessoas passavam, riam, uma ou outra trazia um ar infeliz, outras tropeçavam, outras barafustavam, muitas corriam, arrastando toda uma parafernália de objectos, e ainda havia quem andasse por ali a deambular, parecendo não conhecer destino. Fixou o olhar num rapazinho de camisola cinzenta que lhe pareceu não ter mais que 15 anos. Tinha um ar absorto, como se não tivesse nada a ver com aquele cenário buliçoso. Sobretudo, não tinha ar de quem esperava um comboio.
Mas estava atento. Myra não sabia, mas o rapaz da camisola cinzenta estava ali com um propósito muito definido.
Um aviso sonoro indicava a chegada de mais um comboio. O rapaz da camisola cinzenta, que tinha permanecido imóvel até esse momento, pareceu dar um salto: o seu corpo franzino parecia todo ele dizer "é agora". Desencostou-se da parede, e seguiu a passos largos para a linha que em que havia chegado o comboio, o que não era muito longe do sítio onde Myra estava . E parou. Pareceu ajeitar o cabelo, ligeiramente louro, ligeiramente ondulado (podia-se dizer que o rapaz da camisola cinzenta era ligeiramente bonito, também). "Aah", pensou Myra, "Claro. está à espera de alguém.". E estava. Mas de ninguém em especial. Num hiato de 10 minutos, o rapaz da camisola cinzenta circulou mais ou menos aos círculos por entre os apressados passageiros que chegavam naquele comboio, e os que queriam seguir viagem nele: um encontrão ali, uma bolsa descuidadamente aberta acolá, e o pequeno carteirista tinha subtraído quatro ou cinco carteiras. Myra sentiu um impulso de indignação que apenas durou um segundo - e foi substituído por uma curiosidade comichosa que queria saber mais sobre aquele pequeno criminoso da camisola cinzenta.
Quando o movimento da chegada/partida daquele comboio esmoreceu, Myra, que tinha seguido religiosamente todos os passos do rapaz da camisola cinzenta, levantou-se, deixando para trás a sua mala, e foi andando, fingindo estar apenas matando o tempo à espera do transporte. O rapaz da camisola cinzenta tinha parado de novo, e tinha também voltado ao seu ar absorto e nada ligado ao mundo. Myra fingiu ir deixar alguma coisa ao cesto dos papéis mais próximo, aproximando-se discretamente das costas do carteirista. Estando praticamente ombro-a-ombro com ele, disse baixinho, mas de modo que o rapaz da camisola cinzenta ouvisse:
- Eu vi .
Sem se voltar, e mesmo sem olhar para ela, ele disse:
- Eu sei.
Mas como? No meio da confusão das partidas e chegadas, Myra achava impossível.
- E não foges?.
- Não, - disse ele - , Não me tentaste impedir à primeira, é porque ias ficar a ver. Viste?
- Vi.
- E então?
- Então o quê?
- Que tal me safei?
Myra não queria acreditar na petulância do rapaz da camisola cinzenta. Tinha tido assistência, e estava radiante como um actor de um espectáculo de sala cheia.
- Safaste-te, mas aquelas pessoas vão precisar das carteiras, miúdo.
O Rapaz da camisola cinzenta fungou e levantou os ombros:
- 'Tá bem, mas o dinheiro faz mais falta a mim do que a eles.
- Como sabes isso?
- Sei.
Myra imaginou que era ela a ficar sem a sua carteira - nem era o dinheiro: era o frete de arranjar de novo os documentos.
- Aquelas pessoas vão ter chatices por causa dos documentos.
- Eu depois de tirar o dinheiro, deixo por aí as carteiras, não há crise. Os papéis não me servem para nada. Só dinheiro.
- Eu podia denunciar-te.
- Mas não denuncias.
- E como sabes isso?
O rapaz da camisola cinzenta olhou directamente para Myra, pela primeira vez.
- Porque se quisesses, já tinhas denunciado. Mas vieste foi falar comigo.
Ele tinha razão. A cusiosidade dela tinha sido mais forte do que a distinção entre o certo e o errado.
- Espertinho. Mas não devias andar a roubar carteiras por aí. Podes dar-te mal.
- Diz que sim. Mas não me importo. Não me apanham.
Myra ia dizer alguma coisa, mas o rapaz da camisola cinzenta adiantou-se.
- Vou-me embora. Adeus.
E antes que Myra sequer tivesse tempo de abrir a boca para responder, o pequeno carteirista desapareceu.
E Myra perdeu o comboio que esperava.
Bluerussian

Passo # 0

Porque se deve escrever para ler, não para jogar fora. Porque se deve viajar de dentro para fora, e vice-versa, explorando todos os recantos da existência.
Sobretudo, para que se guardem coisas que se quer rever tempos depois.
O que está escrito, está escrito. E fica assim.